Paulo Mendes da Rocha: "A arquitetura existe para evitar o desastre"

É dele o projeto que transformou uma parte da estação ferroviária da Luz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, a maior cidade do mundo de falantes de português. É dele, em Lisboa, o novo Museu dos Coches. Com Ricardo Bak Gordon, Rui Furtado e Nuno Sampaio, insiste. A equipa.
Publicado a
Atualizado a

A conversa é encantatória, passa de tema em tema com polos que lhe são especialmente queridos. Como a própria ideia de conversa, início de tudo, porque no princípio está o verbo e o verbo existe para fazer a ligação entre as pessoas. E aquilo a que ele chama a notícia, o que é novo e é dito, comunicado, recebido, entendido, o que nos faz dar passos em frente. Paulo Mendes da Rocha, 86 anos, é um dos grandes arquitetos do Brasil, um dos grandes arquitetos do mundo. Recebeu em 2001 o Prémio Mies van der Rohe para a América Latina, pela Pinacoteca da cidade de São Paulo, e cinco anos depois o Prémio Pritzker, que só foi para o Brasil em 1988, para Oscar Niemeyer. A declaração de Thomas Pritzker no dia da entrega do prémio, em Istambul, resume o trabalho deste homem baixo de bigode forte, que observa tudo em volta, professor universal: "Mostrou uma profunda compreensão do espaço e da escala na enorme variedade de edifícios que desenhou, de casas particulares a complexos de habitação, uma igreja, museus e estádios desportivos, até planos urbanísticos para espaço público." Nasceu em Vitória do Espírito Santo, um pouco a norte do Rio de Janeiro, e dessa ligação a uma cidade portuária fala nesta entrevista. Foi em São Paulo que estudou e ensinou Arquitetura, morou aí toda a vida. Regressou a Vitória para aí criar uma parte de cidade no Cais das Artes, um complexo onde a linha de água é um elemento arquitetónico. Nunca fica pela superfície das coisas. Vai relacioná-las, procurar a origem, descobrir significados.

Quando olha para o Museu dos Coches, o que é que vê?

Nós estamos emocionados de ver o trabalho realizado. Quando digo nós, conto com o meu parceiro aqui em Portugal, o arquiteto Ricardo Bak Gordon, o engenheiro Rui Furtado, e também aquele que vai montar o cenário, o responsável pela comunicação visual, o arquiteto Nuno Sampaio. Esta é a linha da frente de ataque da equipa. Foi um trabalho difícil, pela responsabilidade do lugar e não só. Mas amparado por eles fiquei tranquilo. E o resultado parece muito bom. A obra está muito bem construída. Temos de cumprimentar os operários que trabalharam aqui. Eles é que suaram para carregar as pedras. Mas o que nos interessa, e isso leva um certo tempo, é conhecermos o modo como o povo vai receber isto.

Mas falta todo o trabalho de musealização, não há indicações, explicações. Não o incomoda o facto de a inauguração ter sido feita sem estar tudo pronto?

Eu não vejo isso como uma pena. Pelo contrário. O que está feito é já bastante consistente, com coisas ainda por fazer, mas isso é uma presunção do que acontece com qualquer museu. Não se espera que a exposição seja definitiva, para sempre. Sempre sonhei com o seguinte: retirar alguns dos coches para o depósito ou para a oficina, ou junta, abrir um espaço para o lançamento do primeiro automóvel movido a energia solar. Coisas assim.

Não quer que seja um museu só do passado?

A história tem de continuar. A ideia de qualquer museu é ver como o homem aprende a pensar em tempos que vão mudando. Nunca está pronto. Um museu que se preze nunca vai ficar pronto. Você vê o Louvre, um museu que toda a gente conhece. Recentemente fez-se aquilo tudo, uma escavação de 20 metros de profundidade, 300 metros por 80 da Cour [átrio] Napoleão com a piramidezinha de cristal, e o museu estava lá há vários séculos. Um museu transforma-se sempre. Enfim, este Museu dos Coches não se transformará totalmente, vai ficar para sempre porque não vão aparecer coches de novo...

Há coches muito diferentes uns dos outros, de diferentes épocas.

Sim, e com funções diferentes também. Por exemplo, há o famigerado coche dos correios, que é uma utilidade. Já o vimos até em filmes de cowboys. Um carro que transporta notícias... e agora o museu é que dá a notícia da história do carro. Tudo isso é muito fantástico.

Quando estiver concretizada a parte museológica, que diferenças maiores vamos sentir?

Quando estiver feito o projeto expositivo, vão ser projetados filmes nas paredes. Por exemplo, a visita da rainha de Inglaterra a Lisboa - ela usou um destes coches. O filme está aí, o jornalismo registou. Por outro lado, pode exibir um filme particularmente curioso, como o Casanova" 70, com Marcello Mastroiani e Virna Lisi [1965, realiz. Mario Monicelli], que se passa inteiro numa viagem de coche. E outros filmes, a mostrar detalhes sobre como se constrói, coisas de mecânica, verdadeiras aulas. Tudo isso serão projeções nas paredes. Estas grandes paredes, estes grandes espaços, são destinados a isso como se fossem telas.

Os outros membros da equipa dizem que logo na primeira maqueta que fez em papel já estava tudo pensado, da ligação ao bairro até ao pormenor. Como um deles disse, tem uma capacidade de "ver da Lua e ao mesmo tempo com a lupa". Foi isto que idealizou?

O jogo, para nós arquitetos, é ver a transformação da ideia em coisa. Ideia e coisa são aqui a mesma coisa, num certo sentido. Este museu exige uma grande altura, pelo porte dos artefactos que são exibidos. Não se pode confinar estes grandes carros. Essa ideia de grande altura, o H de qualquer viga para realizar essa suspensão que nós queríamos para que o lugar tivesse fluidez, justamente está na altura das paredes. A viga está lá dentro e não embutida nas lajes, como de um modo geral se faz numa construção qualquer. E isso resolve tudo.

O que é que sente quando passeia por uma cidade com tanta história como Lisboa ou como Istambul, onde recebeu o Prémio Pritzker em 2006?

Essa pergunta tem uma abrangência planetária. Essa questão da cidade que é muito presente para todo o mundo. As cidades só existem quando são todas elas - umas falam das outras. À medida que o mundo se foi descobrindo, imagina o avião que te leva de São Paulo a Londres em dez ou doze horas. Lisboa ao Rio de Janeiro em oito horas. Uma coisa fantástica. A conversa é entre cidades, em todos os aspetos: seja política, moda, estratégias, etc. A visitação é muito interessante. É difícil prever o que vai acontecer. É sempre à luz da experiência da cidade mais antiga.

Não o preocupou estar a interferir numa zona monumental como Belém?

É uma enorme responsabilidade. Quando me convidaram, o que aceitei foi vir cá ver tudo. Vim até aqui ver do que se tratava, como se estivesse em casa, na minha Vitória do Espírito Santo, nessa frente das águas. É uma maravilha. Fiquei muito aflito, com certeza. O lugar já é de grande encanto com as suas circunstâncias, a ladeira, a chegada do mar... É para você poder andar distraidamente na Rua da Junqueira, na ladeira lá de cima, na praça, dirigir-se ao mar, aos Jerónimos.

São camadas e camadas de história, de usos diferentes, de gerações sucessivas?

Lisboa tem uma história de mais de um milénio, as cidades americanas têm 300 anos. Isso é fantástico. Para nós, no Brasil, 400 anos não é nada. O que são 300 anos para construir uma cidade? Só o nosso arquiteto Niemeyer tem 100! Nova Iorque é a cidade americana por excelência, a cidade que mais expressa essa ideia do novo. O contraponto entre as cidades é muito interessante. Lisboa é cada vez mais Lisboa quando se constroem novas cidades. É sempre à luz da experiência da cidade mais antiga. A cidade é o cenário que fica.

Falou na cidade onde nasceu. O que é que tem em comum com Lisboa?

Sinto essa grande parecença. É a mesma coisa: uma entrada estreita, o porto lá no fundo, não é um rio porque a cidade é uma ilha, mas na parte central da cidade a configuração é a mesma, absolutamente semelhante. A cidade foi fundada ali porque os navios da época podiam ficar atracados num abrigo, era um ancoradouro protegido. Os escaleres, os batelões, traziam e levavam, não havia cais de atracação, não se conheciam essas técnicas de fazer seja com enrocamento, muralha de cais ou tubulões. Os barcos ficavam lá fora.

Quando ainda não havia um porto preparado para acostarem?

Sim. Fiz uma obra no Recife, na frente de cais. Quando se escavou no fundo daquelas águas mais próximas, o que mais se encontrava eram moedas. A explicação é muito simples: o pessoal que descia nos batelões que atracam na lama, na beira da água, para ajudar aqueles figurões a descer dos barcos, transportar uma carga daqui para lá, recebia gorjeta e quando a moeda caía na lama não adiantava procurar. Havia um enrocamento de moedas! A obra parou porque os operários começaram a pegar as moedas. A cidade chama-se Vitória porque houve uma vitória numa batalha naval, os franceses invadiram aquilo, em 1520. A história toda está ligada a isso, à navegação, à vitória contra os franceses. Imagine você que era só uma barca, foi lá, expulsou os franceses e depois ela mesma naufragou. De qualquer maneira, foi uma vitória. Até o cineminha que lá existia tinha o nome do tal batelão, o Glória.

Fala muito em notícias, diz mesmo que a vida são notícias. Porquê?

Talvez eu tenha dito isso estimulado por você, que é uma notícia. É ávida de notícias. Mas a imagem é inquestionável. Uma criança está em frente à notícia. No sentido biológico, a vida é uma predisposição às notícias. Você vê toda essa teoria científica que hoje para nós é absolutamente não discutível - a evolução das espécies. Uma flora, algumas árvores, todos os seres vivos. Eles se adaptam em função do quê? De uma solicitação que podemos chamar notícia. Outra coisa interessante quanto a essa mesma raiz da questão - a evolução - é o facto de estarmos vivos ao mesmo tempo. O que é que nos torna melhores do que os outros? É fruto do que eu queria dizer. Você pode perder a notícia, a história de grandes espécies que foram extintas, o desastre que é inexorável. Mas também pode ser por falta de interesse, falta de perspicácia para ficar atento. Isso é a fundação da nossa consciência. E há o inconsciente, aquilo que você guardou porque na ocasião percebeu, por instinto, que essa notícia você não podia perder. Fica guardada na memória, no intelectual.

E depois voltam à superfície em determinados momentos da nossa vida?

O que são memórias da infância? Não pode ser a desordem das memórias como qualquer coisa perturbadora. É uma outra ordem, nítida, que não era para esquecer e não esquecemos. Muito mais tarde, quando se está numa situação de urgência de tomar uma atitude ou de fazer um ofício, você é movido pela angústia. Essa angústia, que é positiva, pode degenerar e ficar um angustiado doente. Mas, em rigor, a situação de angústia é estimulante. E nós estamos feitos para isso. Você convoca essa memória que estava guardada. Essa é a nossa consciência.

Quando faz um paralelo entre Lisboa e Vitória do Espírito Santo, fala só do cenário, do construído, ou também do modo de vida, das pessoas?

Eu tenho a impressão de que há algo de especial nas crianças educadas junto às águas do mar, por causa da grande experiência que o mar exige. Se o tempo vai mudar, o pescador não vai sair para o mar, por exemplo. Tudo isso influi na sua educação, você se educa vivendo ali distraidamente. Educa-se na grande sabedoria da atenção daquelas personagens, seja o marinheiro ou um simples pescador, com a natureza, com a questão da geografia, da mecânica dos fluidos, das ventanias, das marés.

Intuitivamente? Aprende com a vivência?

Necessariamente. Estão atentos às notícias. Senão, você pode entrar em situação de desastre. Por exemplo, para a construção, dando um salto já para a questão da arquitetura. Você pode dizer que não há apenas um conceito a destacar, são infinitos. Mas se você quisesse, por curiosidade de conversa, falar de algo que se destaca, poderia ser evitar o desastre.

Os desastres da natureza?

E também da ação do homem. Um arquiteto vai construir e pode ser um desastre, não simplesmente o desastre de a coisa ser estável ou ruir, mas um desastre quanto ao êxito futuro, quanto ao conteúdo da notícia que não interessa aos outros do futuro. Tudo isso você pode aplicar ao seu trabalho, seja uma música, seja uma dança, seja uma arquitetura ou uma obra de engenharia.

Na sua obra, e em particular podemos ver isso no Museu dos Coches, há uma grande ligação entre arquitetura e engenharia. Deixa à vista o esqueleto, como se quisesse mostrar como está feito.

Engenharia e arquitetura têm de estar associadas, não há dúvida nenhuma, historicamente é assim, banalmente aceita-se isso. Os engenheiros chamam "obras de arte" a algumas obras que são tidas como notáveis, justamente porque são interferências com a natureza e todos percebem do que se trata - pontes, túneis, canais, barragens. Havia inclusive - digo havia porque não tenho a certeza se ainda há - umas disciplinas na universidade ligadas à ideia de obras de arte. Você vê essas obras de arte destacadas como tal, porque elas interferem de uma maneira nítida na natureza, com o sentido de que era indispensável interferir, se não a coisa parava. Se a cidade não passa para o lado de lá, eis a ponte, e a cidade vai encontrar o outro lado.

Todas as estradas são isso mesmo, não?

No fundo, o que nos une é essa questão da natureza não como uma paisagem simplesmente mas como um conjunto de fenómenos. Tudo isso deve ser intuitivo, não se pode viver pensando nesses detalhes, você lá pelas tantas raciocina assim, com tudo isso como uma totalidade. A ideia de totalidade é interessante. Se você divide uma obra, de arquitetura neste caso, aos pedaços, a função, os aspetos de beleza, não sai nada, fica uma espécie de aglomerado de destaques.

O ensino tradicional não é isso mesmo? Dividir tudo em áreas estanques, sem criar uma ideia global?

Talvez a grande questão do nosso mundo, que nós chamamos a ponta da civilização, onde pretendemos estar para resolver os problemas que estão aí e que são muito grandes, seja convocar isso que chamamos sabedoria, com toda a timidez e o respeito pela consciência de que seria impossível uma suprema sabedoria. Mas o que seria hoje uma sabedoria? Como tocar as coisas? Como decidir? A política é uma questão fundamental na arquitetura, é indispensável de considerar. Construir a cidade sem decisões políticas que resolvam essa contradição daquilo que dizíamos - evitar o desastre - é o contrário do que devia acontecer. Você pode e deve ter consciência de que talvez não saiba exatamente o que fazer. Mas pode saber nitidamente o que não deve fazer. Evitar o desastre é isso: por aqui não, por aqui também não, por aqui é possível continuar. Pode não ficar perfeito, excelente, mas tem a direção que é estimulante.

Sei que gosta muito de música e que nela encontra histórias que explicam e se relacionam com a história...

Sim, sou um apaixonado pela história dos negros da música americana. O jazz não é outra coisa senão uma abertura para o outro. Esse é o encanto do jazz, a música em que um provoca o outro. Com os instrumentos musicais, toda a música deve ser assim. Mas o que os negros fizeram com a música, essa música americana, o soul, essa cantoria americana do Sul é triste, é mesmo chamada de blues. Mas ela é sedutora de beleza tirada da tristeza, porque é uma reação contra. Não é: eu vou esconder-me para chorar. Vem cá que eu vou chorar para você ver. Aquele choro não deixa de ser uma forma de indignação, é a demonstração de que aqui não aguento mais. Então, chora na voz ou no piano. Não foi pensado assim, mas é muito lindo ter a consciência sobre isso.

Sim, olhando para a história dessa música, e sobretudo da vida desses artistas dos blues e do jazz, vemos que foi toda feita de dificuldades, obstáculos.

A Billie Holiday canta uma música, acho que a composição não é dela mas ela é que fez dela uma peça maravilhosa do seu repertório. Chama-se Strange Fruit [Abe Meeropol]. São os negros pendurados, enforcados nas árvores. É uma ação política através da canção. Você imaginou nós sem conversarmos? Qual é a razão da cidade? Se obrigar a dar uma razão, justamente pela consciência de que estamos cantando juntos. É jornalismo. Que notícia podemos tirar daí se eu te perguntar qual a razão? A cidade é feita para podermos conversar.

E sobreviver?

Para não perder o fio, podemos depois parar com isso, mas eu tenho paixão da música dos negros. Os escravos trabalhavam juntos mas isolados, um aqui, outro a dez metros, colhendo algodão, por exemplo, e noutras situações de lavoura também. Eles cantavam mas não em coro. Um cantava, outro respondia. Eles estavam trabalhando e conversando, como se fosse um privilégio, como se fossem ingleses no seu clube, só que tinham de estar colhendo algodão.

Estávamos a falar da cidade, de como nascem as cidades.

Bem sei que você está conversando comigo na minha condição de arquiteto antes de mais nada. O projeto também é uma conversa à distância. Sempre que alguém entra lá tem de ver isso. Qualquer projeto, qualquer construção. Não é um edifício como facto isolado. No fundo, o objeto é a cidade, o objeto fundamental da arquitetura é a construção da cidade.

Se lhe dissessem para fazer uma casa mas sem especificar onde era nem qual era a função da casa, era possível fazer um projeto?

Não. Aí é que está o que nós estamos falando. O arquiteto é como muitos outros de nós hoje, pela organização que fizemos de tudo isso, um diplomado na especificidade daquela função. Pode ser um médico, pode ser um cientista, pode ser um pesquisador. Um exercício intelectual como esse é sempre possível mas não faz muito sentido a não ser como exercício. Por exemplo, se me dissesse faça uma casa, eu faria um prédio vertical, conhecendo os problemas de hoje. Seria uma casa para todos, com uma certa flexibilidade de planta, nas queria a explicação do terreno. E teria a minha opinião sobre aquilo que ia ficar visível. Não faria nunca um edifício de cem andares, porque você deve imaginar que uma criança pode ficar perdida, um prédio de cem andares não seria bom para um casal viver, está muito longe do botequim da rua, do jornaleiro. Por experiência, o máximo seria 12 andares, ou seja, 30 metros a partir do chão, contando com um elevador, e imaginando que tivesse transporte público, que o metro passasse por ali, etc. Mas como facto isolado, fazer uma casa como propôs não, eu queria saber a planta, o lugar de dormir, o lugar de cozinhar, o lugar de comer. Veja você. Uma casa para um indivíduo, como é que se faz isso? É muito complexo. Fica difícil fugir da objetividade do problema, dizer como é que você faria uma casa sem qualquer informação.

Quando há muito planeamento, quando se constrói de raiz uma cidade ideal, depois não acaba por explodir tudo, pela ação da vida do dia-a-dia?

Lembra-se da ideia de evitar o desastre? Você pode não saber exatamente como mas pode tentar fazer uma cidade hoje em dia. E as situações não são idênticas. Você pega um continente como o americano, que é novo do ponto de vista do saber da engenharia da construção, das coisas que havia aqui, e mesmo assim você tem de corrigir. Estou pensando no Brasil, onde os nativos eram muito frágeis, com casinhas de palha, madeira. Mas se for para o lado do Pacífico, para a parte espanhola da colonização, vai encontrar coisas que equivalem ao Egito, à Grécia, pirâmides, esculturas de pedra, coisas fantásticas. Nós estivemos sempre em formação dentro dessa ideia de estar esperando notícias.

Porque os colonizadores eram diferentes ou porque as pessoas que encontrou e as que foram para lá marcaram essa diferença?

Esse infame episódio da escravidão fez que essa América do lado de cá, do Atlântico, fosse afinal o lugar onde se ia empreender as grandes plantações, o que nos deu margem a essa infâmia mas povoou as cidades, seja Nova Iorque seja o Rio de Janeiro, de uma população do mundo inteiro - a colónia árabe, a colónia italiana que no Brasil, principalmente em São Paulo, é muito importante. Mas a presença do africano marca muito o que seria a cidade americana de um modo geral. As nossas, brasileiras, e as cidades da América do Norte, principalmente. Não é que não haja, mas na Argentina, no Uruguai, no Chile, nos países de colonização espanhola, há menos presença do negro. Isso é muito forte na lírica, na poética, no comportamento, no modo de ser, desses países.

É a marca deixada pelos escravos, então, mais do que a dos que mandavam?

O colonialismo, modo geral, é uma política desastrada, e ainda é, estamos lutando contra isso. O que o mundo hoje vive, em rigor, é uma revisão crítica da política colonialista. Não no sentido reivindicatório, mas no sentido inteligente de como podemos evitar conviver sem exploração indigna do trabalho humano. O trabalho infantil, a escravatura...

Está a dizer que a escravatura é muito recente? Que há escravatura hoje?

Muito recente e muito convivente com religiões ocidentais, onde é absurdo você aceitar que se possa fazer aquilo que nós fizemos com os escravos de uma maneira geral. No mundo, não estou a falar só no que se deu no nosso meio. Tudo isso é de uma delicadeza incrível. Falávamos em cidades. Mas aqueles índios nativos da região onde está o Brasil, que eu chamei de frágeis, fazem uma pequena cabana para viver, que chamam uma oca. Imediatamente associam várias e chama-se uma taba, é já uma cidade, é uma manifestação da consciência de que temos de estar juntos para viver, pescar, caçar. Que juntos é melhor do que cada um sozinho. Nasce-se, dança-se, cria--se rituais, linguagem, tudo é fruto da conversa. É a nossa história, com a experiência que temos sobre nós mesmos, não temos mais nada. Estamos vivendo um momento muito extraordinário, difícil, horrível, em alguns aspetos. É uma contradição entre o que sabemos e os absurdos que ainda se cometem.

Como é que tendo tanta informação permitimos isso?

A consciência de que estamos vivendo isso é estimulante. Vamos transformar o que hoje temos em novas situações mas é sempre a mesma questão. Porém, com uma dimensão que nunca houve antes. Há pouquíssimo tempo - 500 anos não é nada -, quando as embarcações chegaram à América, quem dizia que aquilo era possível, que a terra era redonda, estava condenado à fogueira. Foi o que aconteceu com o Galileu, não o esqueçamos. Estamos vivendo o que nunca se viveu antes, por várias razões, inclusive o grande avanço nos instrumentos de comunicação: uma mundialização. A cultura popular é tão divulgada que pode produzir uma transformação muito forte e muito rápida, com um sentido de revolução. Tal como aconteceu na passagem da Idade Média para o Renascimento, que foi um efeito da cultura popular, com o fim de todos dogmas, com escritores como Rabelais a escarnecer dos dogmas, com Lutero a pôr em causa. A escravatura entre nós nessa época foi tão absurda quanto podia ser toda a piedade falada pela Igreja. Produz-se o absurdo. Cuidado, a questão política é fundamental.

Refere-se, por exemplo, ao que se passa atualmente com o Estado Islâmico?

Ainda agora vimos as destruições em Palmira, filmadas até por eles. O facto de isso ser possível faz que o homem tenha de fazer um congresso mundial, a totalidade dos vivos a discutir essas questões. Porque pode prevalecer, pode ganhar a batalha uma tendência obscurantista. Cada um de nós vive muito pouco tempo, gosto de lembrar o que diz o filósofo: todos sabemos que vamos morrer em breve, mas sabemos também que não nascemos para morrer, nascemos para continuar. É um raciocínio belíssimo com poucas palavras. Quer dizer que o fundamental é a educação e a discussão sobre o que faremos.

Afinal, nós temos o mesmo mar, o Atlântico. Sente que é o mesmo mar, dos dois lados?

Talvez forçosamente. O sonho do continente latino-americano, o sonho brasileiro, são as ligações Atlântico-Pacífico, para efeitos de economia, portos que se abrem para cá e para lá. Nunca fizemos isso. Num certo sentido, seria contrariar o Tratado de Tordesilhas. Mas esse é o grande plano que muda o território interior todo da América do Sul, exige uma participação, uma colaboração entre vários países. Essas passagens devem ser estrategicamente configuradas, não pode ser em qualquer lugar. Isso são obras que vão mudar um pouco o interior abandonado do Brasil.

Esse é o futuro as cidades, o interior e não o litoral?

Essas expectativas é que me fazem dizer que preferia não poder imaginar o que serão as cidades num futuro próximo. Vai ser muito interessante. Para os jovens deve ser entusiasmante saber que são personagens de uma transformação, imaginando que se transformará de acordo com os desejos e vontades atuais do pessoal que está chegando agora. O futuro é livrarmo--nos dessa máquina infernal que são os automóveis, e isso vai mudar muito as cidades, inclusivamente o comportamento das pessoas.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt